sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Poesias e Poemas == Indianarâ Siqueira

ESQUINA

Autoria: Indianarâ Siqueira

De todas as formas de discriminação a pior é pela qual passam as travestis.
Esses pássaros raros da noite.
Como os lendários vampiros, as travestis evitam o dia. O dia as fragiliza.
Elas queriam às vezes ser invisíveis de dia, para poderem caminhar desapercebidas entre a multidão, sem ter que escutar, nem ver dedos em riste apontadores e sorrisos de escárnio dizendo que são homens.
Xingamentos tipo: João tem futebol amanhã, e aí traveco, veado.
É como se a sociedade resolvesse usá-las como válvulas de escape para suas frustrações.
Mas a noite, há! Bendita noite caindo, encobrindo com suas sombras as esquinas.
A noite vai também libertando esses seres noturnos que são as travestis.
E como os lendários vampiros, elas vão sentido o dia cair.
Então, saltos parecem ter vidas próprias.
O estojo de maquiagem aberto parece liberar o bendito sopro como Deus soprando vida nas entranhas de Adão.
E assim, enquanto o barulho do vai-e-vem de pessoas vai diminuindo, e o barulho de tráfego vai sumindo, elas, as travestis renascem com Phoenix nas esquinas ou como flores que só brotam a noite.
E ali, nessas esquinas, elas são donas, deusas onde mãos ávidas querem tocá-las, bocas sedentas querem beijá-las, suplicando para que os redima de seus desejos escondidos.
E assim, todos os xingamentos se transformam em “elogios”, e o traveco em “boneca”, “delícia”, “é de uma assim que eu preciso”, “gostosa”, “deusa” etc...
E então, ao contrário do dia, às mãos das deusas são beijadas, outros beijam-lhes os pés como que pedindo perdão ou em sinal de devoção, outros se agarram aos seus corpos, como devotos abraçados as estátuas de suas santas preferidas ou como náufragos que se agarram às tábuas de salvação em um mar noturno.
Mas de repente o galo canta como para avisar a esse devoto, Paulo, Pedro ou João que ele tem que negar, e os primeiros raios de sol começam a feri-las e elas como os lendários vampiros trazem não mais o brilho das luzes noturnas artificiais, mas a certeza que é hora de se recolher.
Talvez elas nem despertem desta noite, pois por vergonha de serem vistos como devotos dessas deusas proibidas das esquinas, os adoradores podem virar algozes.
E amanhã em um jornal qualquer elas serão notícias, pois um adorador qualquer fez churrasco de traveco.
E assim como a Phenix num desafio só seu, como o sol que despontou e a transformou em cinzas, ela leva seu corpo para seu altar, esperando que a noite chegue rapidamente, e que o estojo se abra como um ovo.. Para que ela renasça outra vez nas sombras da noite.
A flor da rua, uma poesia sem rima.
Afinal para que servem essas deusas, senão para enfeitas as esquinas.
Então, a próxima vez que você cruzar esse ser, pense em tudo o que você tem.
E em tudo o que ela abriu mão para poder renascer e sobre o seu altar-salto essa deusa te olha de cima, lembre-se:
Elas são as donas das Esquinas!!!!!

Texto lido na abertura da peça teatral Esquina com Luana Muniz.

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